A opinião é da advogada norte-americana Priscilla Hayner, autora do livro Unspeakable Truths (Verdades Não Ditas), sobre comissões de verdade que funcionaram na África e na América do Sul.
Atualmente a advogada é diretora do escritório do Centro Internacional para Justiça de Transição, com sede na Suíça. Por telefone, de Genebra, ela falou à Agência Brasil.
P - O Brasil prepara um projeto de lei para criar uma comissão de verdade que apure crimes cometidos pela ditadura militar. Que expectativa a senhora tem quanto a esse processo?
Priscilla Hayner - O ideal é uma comissão da verdade que traga muito mais informações sobre o que aconteceu, acessando os arquivos oficiais, ajudando a encontrar os restos mortais de desaparecidos, falando com as vítimas sobreviventes e parentes das pessoas mortas.
A comissão também deve ser capaz de reunir informações de organizações não governamentais e de inquéritos administrativos no passado. Não há motivo para não se ter acesso a todos arquivos.
A comissão tem que ter poderes suficientes para acesso a qualquer informação. Ao mesmo tempo, a comissão deve ter o cuidado de respeitar os direitos de quem se envolveu com a repressão.
P - Há alguma experiência emblemática de comissão da verdade no mundo?
Hayner – Peru, Timor Leste e África do Sul tiveram experiências interessantes, mas não há modelo para copiar. Cada comissão de verdade é concebida de acordo com o contexto nacional. O Brasil terá seus próprios termos de referência.
Esse processo leva tempo para planejar, fazer consultas públicas e permitir que os sobreviventes e as famílias das vítimas possam ser ouvidas no processo.
Um erro que deve ser evitado é daquelas comissões nas décadas de 80 e 90 que limitaram a apuração às pessoas que foram mortas ou desapareceram, mas não examinaram os casos de tortura de quem sobreviveu. Não é boa idéia excluir grupos ou categorias de vítimas.
P - O que é mais importante fazer: punir culpados, reparar materialmente as vítimas e parentes ou reconciliar o País com o seu passado?
Hayner - É difícil priorizar um desses enfoques, pois estão interligados. Deve-se escolher um objetivo e reparar as vítimas e parentes. Mas não dizer a verdade e nem pedir desculpas também resulta em ressentimento.
As reparações não podem substituir o direito de saber o que aconteceu. Para quem perdeu um ente querido, a reparação material é pouco. Há certamente a necessidade de se julgar o que aconteceu. Quando há milhares de agressores pode não ser possível processar todos.
É importante que os principais responsáveis prestem contas.
P – Como a comunidade internacional de defensores de direitos humanos vê a transição da ditadura para a democracia no Brasil?
Hayner - Existe um reconhecimento de que não foi feito o suficiente. A situação brasileira é interessante porque não houve um completo silêncio ou uma rejeição completa de olhar para o passado. Mas há muita coisa faltando.
Houve esforços para levantar o que ocorreu e ainda há uma grande quantidade de informação escondida. Agora, o Brasil faz um esforço muito mais robusto para obter o que está oculto e desconhecido.
P - Especialistas vêem a violência policial como herança do regime militar. O trabalho da comissão da verdade pode repercutir nessa atual violência?
Hayner - Certamente, a intenção de uma comissão da verdade é reduzir a impunidade e qualquer forma de violência oficial em curso, como é o caso da polícia. Mas além do trabalho da comissão, há outros fatores como a vontade política para implementar as recomendações.
Uma parte central do mandato de uma comissão é a mudança e não permitir a continuação da violência. A simples prestação de contas é insuficiente, pois deve haver um esforço para evitar futuras violações.
P - O tema dos direitos humanos é sempre muito criticado no Brasil. Essa resistência é comum em outros países?
Hayner - Definitivamente não há mais contextos em que o público desconheça totalmente os direitos humanos. Os envolvidos nas violações não devem obter a imunidade. A responsabilidade é essencial. A construção de um profundo e robusto sistema democrático e Estado de Direito exige uma centralidade muito firme de respeito pelos direitos humanos.
P - No direito internacional, é comum que a anistia perdoe a violência de agentes do Estado?
Hayner - Em geral, a anistia não é considerada aceitável para certos crimes, como crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra, crimes internacionais.
P - Passados mais de 15 anos do fim do apartheid na Africa do Sul e de início do processo de reconciliação nacional, como a senhora vê o país de Nelson Mandela?
Hayner - Eles ainda estão trabalhando sobre essas questões. A comissão da verdade foi muito importante, mas no processo todos perceberam que não era suficiente. Questões de reconciliação e de justiça continuam a ser urgentes e apresentam questões para o futuro.
Pessoas como [o bispo anglicano e Nobel da Paz] Desmond Tutu compreenderam que a conciliação não é alcançável rapidamente, leva tempo. Houve uma proposta de anistia mais tarde, mas as vítimas se opuseram a uma ampla anistia. As reparações também foram complicadas, uma fonte de frustração.
As vítimas geralmente não receberam o que pensavam ser devido. Os desafios econômicos e desequilíbrios raciais continuam. A comissão da verdade foi importante, mas não resolve todo o problema.
Por Gilberto Costa; tradução de Claude Allen Bennett Junior e Paula Laboissière.
Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes
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